Anotações sobre o cinema nas crônicas de Cyro dos Anjos
Mariana Oliveira
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Cyro dos Anjos (1906-1994) is a writer born in Montes Claros, Minas Gerais. From 1927 to 1956 he wrote columns to a number of Brazilian newspapers, among them O Estado de Minas and A Tribuna. He signed his essays as a number of characters, one of whom, the 40-year-old bachelor Belmiro Borba, grew to be so popular that he later on became the main character of Cyro’s first book, Diary of a Civil Servant (1937). Cyro’s essays were eclectic in subject, but many of them talked about the cinema. He dealt with subjects such as the cinema as art and industry, the idealization of the Hollywood actresses and the drama in Charlie Chaplin films. This essay compares and contrasts Cyro’s essays with the writings of other Brazilian intellectuals from the same period, such as Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Eduardo Frieiro and Manuel Bandeira, and analyzes them with the aid of the concepts found in essays of Walter Benjamin and Silviano Santiago. In this manner, an outline of the influence the movies had in the Brazilian culture in the 1930s is drawn.
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Em 1930, época em que o mineiro Cyro dos Anjos escrevia crônicas para diversos jornais, o cinema ainda era uma forma de arte relativamente nova. Criado no final do século XIX, o cinema rapidamente se tornou uma parte essencial da cultura. Embora também tenha sido utilizado como meio de entretenimento e de educação, desde cedo ele teve um viés artístico. Dessa maneira, não é de se surpreender que as “fitas” tenham chamado a atenção de vários escritores brasileiros, entre eles Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Eduardo Frieiro, Manuel Bandeira e o próprio Cyro dos Anjos.
O cinema era mais que uma forma de arte inovadora; ele alterou para sempre a maneira como a humanidade percebia a si própria e ao mundo. Em seu artigo “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin descreveu essa mudança de percepção: “Graças ao grande plano, é o espaço que se torna maior; graças à câmera lenta, é o movimento que ganha novas dimensões”. As modificações rápidas de lugar e de cenário ocasionadas pelos filmes, tão diferentes das fotografias e das pinturas estáticas, eram um choque e um trauma para os espectadores noviços. Uma afirmação de Duhamel em 1930 ilustra bem a estranheza que as películas ocasionavam: “Já não posso pensar o que quero. As imagens em movimento substituem os meus próprios pensamentos”. (BENJAMIN, 1936).
Ao ler as crônicas em jornais dos intelectuais brasileiros da época, fica claro que a experiência do cinema era, em muitos aspectos, diferente da que nós temos hoje em dia. O cinema falado e o a cores eram novidade. Vinícius de Moraes, nos anos 1940, promovia um debate em relação ao cinema falado – e se posicionava contra. No livro Boitempo II, um Drummond jovem espera ansioso pela sessão do mês.
Sessão de cinema
Não gostei do Martírio de São Sebastião.
Pouco realista.
Se caprichassem um tanto mais?…
Prefiro mil vezes Max Linder Asmático.
Ah, que não tarde a vir do Rio
o anunciado Catástrofe Justiceira.
Deve ser formidável.
Repito baixinho:
Catástrofe Justiceira. Catástrofe.
Que pensamento diabólico se insinua
no gozo destas sílabas?
Até agora só tivemos
coisas como O Berço Vazio,
O Pequeno Proletário,
Visita ao Jardim Zoológico de Paris.
Não me interessam documentários insípidos.
Quero uma boa catástrofe bem proparoxítona,
mesmo não justiceira. Mesmo injusta.
Será que na sessão do mês vem
terei este prazer? (ANDRADE,1968, p.149)
Talvez a diferença maior fosse o fato que essa época precedia o vídeo cassete e o DVD, o que significa que os filmes eram assistidos nos cinemas, e nos cinemas apenas. Isso com certeza emprestava aos filmes um clima que se perdeu hoje em dia: assistir a uma “fita” era quase um ritual. As fitas eram cercadas do mistério do escuro do cinema, e poderiam ser assistidas somente durante as suas prémieres ou em réprises. As favoritas deveriam ser guardados na memória, com certeza envoltos em uma aura de nostalgia.
Esse sentimento é bem exemplificado em textos de Eduardo Frieiro e Vinícius de Moraes. No seu Novo Diário, Frieiro, entusiasta da Disney, relata que o filme Pinóquio foi lançado enquanto ele estava de cama no hospital. Noêmia, sua esposa, o consola prometendo que ambos assistirão à fita “quando ela voltar, em réprise”. Essa ocasião só se apresentou ao cabo de três anos. A fita, já velha, estava em péssima qualidade, mas ainda assim, Frieiro se comoveu com o filme, “uma criação encantadora desse gênio do cinema que é o Disney”. (FRIEIRO, 1986, p. 117)
Em uma de suas crônicas, Vínicius medita a respeito do mesmo fenômeno:
Destino engraçado, o dos filmes. Não ficam na estante, como os livros; nem na parede, como os quadros; nem nos discos, como a música. Ficam na lembrança, apenas. Será por isso que nos deixam, alguns, tanta saudade. É que marcam melhor certas fases da vida, certos sentimentos, certas lutas; e se os revemos assim, num muro de um cineminha de subúrbio, eles nos são restituídos de um modo particularmente intenso. (MORAES, 2006, p.59)
Embora Cyro dos Anjos não tenha sido tão prolífico quanto Vinícius quando o assunto era cinema, uma dezena de crônicas que o autor dedicou aos filmes deixa claro que eles eram parte importante de sua vida. Essas crônicas não são assinadas somente por Cyro, mas também pelo seu famoso personagem, o amanuense Belmiro Borba, e o sobrinho deste, Glycério. A maneira como o cinema é encarado muda sutilmente com cada eu lírico, como veremos mais adiante.
Na crônica “O Circo”, publicada no Estado de Minas em 1935, Belmiro constata com alegria o retorno do circo de cavalinhos, já que o cinema e o teatro estão em decadência. Ele afirma ser “de circo”, e zomba dos especialistas dos suplementos de domingo, que tratam de matéria irrelevante, como o número de indivíduos que já foram ao Pólo Norte, o passado de Joan Crawford como atriz de segunda ordem no Kansas, e os ordenados de todas as estrelas de Hollywood (ANJOS, 1935). Essa não é a única vez que Belmiro faz de escritores de cinema o alvo das suas bem-humoradas provocações. Em “As bonecas de Joan Crawford”, o amanuense afirma haver recebido um telegrama com informações sobre a atriz, que seria um ótimo presente para seu amigo e crítico de cinema d’A Tribuna, Barbosa Mello.
Eu poderia fazer-lhe um rico presente, com esta informaçãozinha a respeito da Crawford. Nada o comoveria tanto. Um despacho de Hollywood é para ele o estimulante que é um neologismo para o meu caro Lincoln Kubitschek (…).
(ANJOS, 1935) [1]
Em uma entrevista ao jornal O Globo, em janeiro de 1949, Cyro declara gostar apenas moderadamente de cinema, e quase não frequentá-lo, por causa dos maus programas. Essas atitudes, por parte de Cyro e de Belmiro, contrastam fortemente com a atenção que o escritor devotou ao cinema em suas colunas.
Em outra entrevista, publicada na crônica “Sobre o Cinema”, em outubro de 1949, o autor se detém mais no assunto. Após alertar o leitor de que não é nenhum especialista, Cyro considera que o cinema é, simultânea e contraditoriamente, arte e indústria. Arte porque suas imagens “se prestam a receber a forma de qualquer sentimento, ou a desenvolver qualquer tema”; indústria porque, já que capitais imensos são despendidos ao se produzir um filme, ele necessita buscar o lucro, por vezes comprometendo a sua integridade.
Para mim, este é o drama do cinema, como arte: Caliban que sonha tornar-se Ariel. Entretanto, é preciso não esquecer que o cinema está na sua infância, e que as condições que o oprimem hoje poderão transformar-se amanhã. Todas as artes, em sua origem, quando não forem servas da religião ou do poder mágico, constituíam simples recreação – tal como o cinema em nosso dias. Só com o tempo se libertaram. (ANJOS,1949)
Vinicius de Moraes concorda com Cyro neste ponto. Em uma de suas crônicas, o autor discorre sobre o tema:
O ideal de fazer cinema é um sonho que se paga caro. O material é dos mais custosos, e o Cinema, como a Pintura, e a Escultura, é uma arte substanciosa, visto que ela exige um aparato para se realizar. A Poesia, o Romance, a Arquitetura, a Música, só pedem papel e lápis. Na ausência disso um pedaço de carvão serviria, e uma parede. Não será, por exemplo, a falta de papel e lápis que irá impedir Anchieta, no seu desterro voluntário, de escrever o seu poema em louvor da Virgem. A santa e branca areia, e uma varinha… Vá-se agora fazer Cinema com isso! (MORAES, 2006, p.31)
No seu diário, escrito em 1943, Frieiro revela a sua opinião sobre o assunto:
9 de janeiro – O cinematógrafo, entre todas as artes, é o que tem origens mais prosaicas: é filho do Capital e da Máquina. Entretanto, a esses dois elementos vieram juntar-se Poesia e Fantasia, sem os quais não se pode falar de obra de arte. (FRIEIRO, 1986, p. 64)
Walter Benjamin, que, na opinião de Silviano Santiago, foi “talvez o primeiro grande teórico da modernidade que não teve medo do cinema”, não se absteve de comentar a respeito da sétima arte como mercadoria (SANTIAGO, 2004):
Diversamente do que se passa na literatura ou na pintura a técnica de reprodução não é, relativamente ao filme, uma simples condição exterior que permitiria a sua difusão massiva; a sua técnica de produção funda diretamente a sua técnica de reprodução. Não se limita a permitir, de forma mais imediata, a difusão massiva do filme: exige-a. Os custos de produção são tão elevados que se um indivíduo ainda pode, por exemplo, pagar um quadro, está fora de questão poder comprar um filme. Algumas estimativas mostraram que em 1927 a amortização de um grande filme exigia que ele fosse mostrado a nove milhões de espectadores. (BENJAMIN, 1936, p.6)
Silviano Santiago completa o raciocínio de Benjamin afirmando que o pagamento do cinema se efetua por meio de ingressos. De acordo com Santiago, o cinema é uma obra de arte “coletiva”, que é paga pela coletividade de espectadores. Outras formas de artes mais antigas, como a literatura, podem ser desconhecidas durante o seu tempo, e descobertas e apreciadas por gerações futuras. Um exemplo perfeito disto é o filósofo alemão Nietzsche, que apesar de estar ciente da relevância de seu trabalho, não era reconhecido pelos seus contemporâneos. Embora tenha a sua obra ignorada pelos “homens cultos” de seu tempo, Nietzsche afirma que “vive de seu próprio crédito”. Essa declaração não deve ser interpretada como se o filósofo escrevesse apenas para si mesmo; o que ela significa é que ele tinha confiança que o crédito que ele havia aberto para si mesmo seria “quitado” por leitores futuros, como de fato aconteceu. Isso não ocorre com os filmes, pois a menos que seja estabelecido um diálogo com o público do seu tempo, eles estão fadados ao fracasso e ao esquecimento. (SANTIAGO,2004)
Destes escritores, quem apresentava a opinião mais radical, era o alemão Brecht, que acreditava que a comercialização do cinema alterava o conceito da obra de arte em si.
Logo que a obra de arte se transforma em mercadoria, deixa de se lhe poder aplicar a noção da obra de arte; é então que devemos, com prudência e precaução, mas sem temor, renunciar à noção da obra de arte, se quisermos conservar a função da própria coisa que queremos designar. É uma fase que é preciso atravessar, e sem preconceitos; esse desvio não é gratuito, leva a uma transformação fundamental do objeto, que apaga a tal ponto o seu passado que, se a nova noção reencontrar o uso anterior- e porque não?-deixará de evocar as recordações associadas ao significado antigo. (BENJAMIN, 1936, p.8)
Anos antes que Cyro concedesse sua entrevista ao O Globo, em 1o de setembro de 1934, Belmiro Borba já expressava sua opinião a respeito do tema, na crônica “Teoria do Idílio no Cinema”. Ele inicia a crônica afirmando que somente o cinema americano consegue captar as sutilezas do idílio dos filmes. Mas se o leitor acredita que isso é um sintoma da sensibilidade americana, está enganado. Belmiro apressa-se em esclarecer que os businessmen dos Estados Unidos não se preocupam em cultivar a sua sensibilidade, e que os melhores diretores de Hollywood foram importados do exterior. A perfeição do cinema americano foi atingida por outros meios :
É que só na cinelândia americana foi possível aperfeiçoar ao extremo a arte do cinema. A classificação, o taylorismo, a técnica, os grandes capitais tornaram a indústria perfeita, e a arte acabada, para que seu rendimento atingisse o máximo. (ANJOS, 1934)
Do seu modo zombeteiro e sem compromisso, Belmiro acabou de lançar ao leitor de jornal o desafio do cinema como indústria. A opinião de Belmiro Borba não é a mesma que Cyro dos Anjos expressou anos mais tarde, e parece ter sido elaborada como uma maneira de levantar um debate. Belmiro continua:
Passemos aos subjetivos: estão eles no olhar, nos gestos, nas atitudes mudas e nos transportes dos idiliantes. Um sorriso, para ser técnico, deve ser filmado 53 vezes, e um beijo, para ser satisfatório, será repetido 92 vezes. Depois de tantas repetições, serão eliminadas as imperfeições e os excessos.
A ternura tem de ser policiadíssima, mantendo-se, sempre, o ridículo à distância. A paisagem importa muito: se o idílio se realizar num parque, as árvores têm de ser meticulosamente estudadas e não deve haver flores nem de mais nem de menos. (ANJOS, 1934)
O contraste entre o estilo sóbrio e eloquente de Cyro e a ironia brincalhona de Belmiro ao abordar o mesmo tema ressalta as diferenças essenciais entre o autor e seu personagem.
Nessa mesma entrevista, Cyro afirma que a transposição de obras literárias e a reconstrução de temas históricos no cinema são benéficas. A primeira, porque o cinema não só encorajaria os espectadores a lerem a obra original, como pode chegar a acrescentar alguma coisa à mesma; e a segunda, porque:
A história, por si, já é uma fábula. O maior mal que o cinema lhe poderá causar é afastá-la um pouco mais da realidade. Se isto se der com sentido artístico, não vejo inconveniente algum, pois é bom que se criem mitos: a humanidade não pode viver sem eles. (ANJOS, 1949)
A crônica “Belo Horizonte 1923”, de outubro de 1956, não é sobre cinema, e sim um ensaio sobre a simpatia que o autor sente pelo escritor francês Anatole France; mas, em um momento singelo, Cyro dá uma indicação do seu amor pelo cinema. O autor escreve sobre um jovem – na verdade, o próprio Cyro- que se voltou a Anatole France em uma noite em que ele não tinha dinheiro para beber um chope ou ir ao Odéon.
Os bolsos estavam, como de costume, vazios. Não poderia ir ver o filme do Odéon (Greta Garbo, sua paixão), nem tomar o chopinho no Stadt Wie, bar da boêmia universitária. (ANJOS, 1956)
A maioria das crônicas, no entanto, é de autoria do irreverente Belmiro Borba, personagem principal e narrador do livro O Amanuense Belmiro. Belmiro parece mais à vontade com o tema de cinema do que Cyro. Enquanto Cyro se desculpa dizendo não ser um especialista no campo, Belmiro logo afirma ser um “técnico de cinema”. Além disso, Belmiro se refere aos atores de Hollywood de maneira pessoal e íntima, chamando-os de sua “família cinematográfica”.
Pertenço de corpo e alma à família de Hollywood. Penso em Joan Crawford como se ela fosse uma criatura real, como se ela existisse realmente. Medito sobre Greta Garbo, sobre o mistério da alma de Greta Garbo, tal como se ela fosse a minha amiguinha misteriosa e contraditória, grave e honesta. (ANJOS, 1933)
Em outra crônica, Belmiro reforça a familiaridade que ele sente em relação aos atores hollywoodianos. Ele afirma estar platonicamente apaixonado com as “idéias” de Greta Garbo e de Joan Crawford. Segundo Belmiro, Garbo e Crawford se diferenciam do resto da “idéia humanidade”. Ele as encara como ideais, e não pessoas.
O que têm a Garbo e a Crawford de comum com as outras mulheres? Elas não comem sanduíches, nem têm filhos. Alimentam-se de mel e de flores. São seres imateriais. Talvez sejam a própria idéia em vez de forma. (ANJOS,1933)
Belmiro prossegue com essa brincadeira em várias crônicas, afirmando que não se casará com Joan Crawford porque ela não é monógama, apelidando-a de “Joaninha” e descontraídamente tratando Carmem Miranda por “menina,” um fato demonstrado pela citação, “[v]ocê está intimada, menina, a novo comparecimento no cinema.”. (ANJOS, 1935).
Na crônica “Mae West”, de 5 de outubro de 1934, Belmiro esbanja intimidade com a atriz. Ele toma o seu partido contra um escritor a quem ele chama de “Camundongo Mickey”, que fez comentários maldosos sobre as curvas da beldade.
Aquele galeio de quadris (ou melhor: saracoteio) não é, assim, tão fora de propósito. Nem tão fora de propósito são as demasias de banha que ela apresenta sem constrangimento ao público. O Camundongo se esquece de que há homens de quarenta anos e que o homem, aos quarenta, é mais receptivo à influência das gordas. (ANJOS, 1935).
Na sequência hilária da crônica, Belmiro defende o sex appeal e as curvas perigosas de Mae West, chegando a brincar: “dangerous curves! No parking here!” Segundo ele, Mae West tem uma alma sexual, que não consegue se exprimir apenas pelos olhos, e que precisa ser expressada pelo corpo todo. A conclusão alcançada é que a sensual atriz tem graças próprias, e que ela as tem em boa dose. Eterno enamorado, o amanuense comenta:
O Camundongo emitiu, pois, uma opinião fortemente pessoal e fulminou Mae porque não tolera as gordas. Como não tenho parti-pris, e prefiro todas elas, cá estou para desagravo da maliciosa e envolvente domadora de leões. (ANJOS,1935)
Belmiro Borba não foi o único a se fascinar pelas belas de Hollywood: Vinícius chama Greta Garbo de “mulher orquídea”, Merle Oberon de “Dona Lua”, e se derrete em elogios à Lena Horne.
Sua carinha, que maravilha! Seu sorriso! Eu consigo ouvir seu sorriso!, Lena Horne. (…) Seu riso é carnaval, e sua ausência da tela, uma única e grande quarta-feira de cinzas. Com perdão da palavra, mas eu vos amo, sabe, Lena Horne. (MORAES, 2006, p.167)
A única crônica assinada por Glycério se confunde com as de autoria de Belmiro, por ser, também, sobre o amor platônico dirigido às atrizes. Glycério escreve um bilhete apaixonado para Joan Crawford. Ele repete as idéias do seu “tio” Belmiro, a respeito de amar a Idéia Joan Crawford, e não a atriz em si.
Você é talvez apenas a projeção luminosa de uma idéia, ó Joan dos sonhos meus. E é a sua precariedade que faz a minha dor. (ANJOS, 1935)
O que diferencia a crônica de Glycério das de Belmiro é que este primeiro é mais formal, e mais dado a hipérboles.
O próprio Belmiro admite, em “Carmem Miranda”, publicada no Estado de Minas em 1935, que o cinema americano incutiu nos espectadores brasileiros um ideal de musa longínquo e inatingível. Os jovens olhavam com melancolia para as morenas brasileiras, e suspiravam pelas “louríssimas” americanas. Mas para Belmiro, isso se corrigiu com a presença da sedutora Carmem Miranda nas telinhas, reabilitando o ideal brasileiro e as “meninas do país.”.
Na divertida crônica “Armadilhas para Belmiro”, de 9 de dezembro de 1934, o amanuense insiste que vai ao cinema levado exclusivamente pelo prazer de ver um nu estético. Com uma prosa engraçada e comovente, ele reclama de cartazes que fazem insinuações falsas sobre o filme, criando em Belmiro expectativas que não são cumpridas.
Pouco importa, porém, o que a maldade humana possa maquinar, e quero somente contar-lhes o logro de que estou sendo vítima. Passo pela porta de um cinema, sem a mais vaga intenção de assistir ao filme. Um olho vadio, que não posso conter (este meu impossível olho esquerdo) escorrega rapidamente e desliza sobre os cartazes. Ai, cartazes enganadores! O meu olho esquerdo vê lindas mulheres em sugestivos semi-nu (nu estético, é claro). Sem querer, Belmiro compra o bilhete, Belmiro entra, Belmiro se assenta. Quando dá por fé, está com a atenção na tela. Fica na expectativa das promessas do cartaz. Aguarda, com uma aflição puramente estética, que aqueles quadros prometidos pelos cartazes se desdobrem aos seus olhos. Vai até o fim da fita… e nada. Às vezes, nem uns braços desnudos para desalterar a gente. Fitas absolutamente vestidas, sem a menor ofensa à castidade (ofensas que nunca são muito mal recebidas). (ANJOS, 1934)
Outra experiência malfadada do amanuense no cinema e narrada na crônica “A mulher da esquina”, de 19 de junho de 1933. Nela, ao assistir o filme Esquina do Pecado, Belmiro se comove e chora.
Fui anteontem ver a Esquina do Pecado, e venho contar-vos, leitor, que chorei miseravelmente, no cinema, apesar do pince-nez, apesar da idade. Não foi um simples nublar dos olhos, acompanhado de um aperto de garganta, aperto que ninguém explica e que ocorre precisamente quando o coração baqueia: os olhos se encheram de lágrimas, leitor, e estas transbordaram e escorreram pelo nariz abaixo, pelas faces e pelo cavaignac, em fios que, numa donzela formosa, seriam de pérolas, mas que, num quarentão meio caduco, eram apenas de linfa salgada. (ANJOS, 1933)
Ao explicar o motivo de sua comoção, Belmiro faz uma belíssima e profunda analise do filme:
Que filme profundamente exato, leitor! Vós que tendes a vida pacata e que nunca passastes pela esquina do pecado (e, no entanto, o pecado vos espreita em todas as esquinas!) podeis não ter sentido o drama minucioso que a tela expôs pelo verso e pelo anverso, ora no semblante belo da amante, ora na fisionomia daquele homem fraco demais, como todos nós, para optar, entre a vida de fora e a vida de dentro, e que deixou ambas correrem até que achassem por si mesmas o seu termo. (ANJOS,1933)
Passagens deste tipo mostram que as crônicas do bonachão Borba tratam de outros temas, alem de amor e de romances platônicos. Em varias ocasiões, os textos apresentam belas e interessantíssimas comparações entre cinema e literatura.
Pareceu-me ver personagens de Dostoievsky num romance de André Gide. (ANJOS, 1933)
Carlitos é bem um humorista à maneira de Swift e de Sterne. Nas suas produções estão aquelas características definitivas desse difícil “humour” inglês, de que Hennequin e Scherer fizeram a anatomia, mostrando-nos que, na essência, ele é a pincelada do grotesco dada no momento em que o quadro está arrebatando a nossa sensibilidade. (ANJOS, 1933)
Toda fita de Carlitos é feita de intercalações de Shakespeare e Piotin. (ANJOS,1933)
A análise que Belmiro faz de Charlie Chaplin, na crônica “Anatomia De Carlitos” de 4 de agosto de 1933, entrega a sensibilidade e a inteligência do autor. Embora Belmiro escreva de uma maneira irreverente, ele lida com o assunto com seriedade. A análise revela os traços de drama que se escondem entre as trapalhadas de Chaplin.
Carlitos não tem licença para ser sentimental, ou para ser eloquente. Salvou a vida do milionário, quer animá-lo com palavras vivas, cheias de entusiasmo… Mas veio um acesso de tosse. Vai ver a linda cega por quem se apaixonou; apresenta-se-lhe um quadro doloroso: da janela ele a vê no leito, doente. Assenta-se na escada, toma uma grande expressão de sofrimento e de dor… mas um vaso lhe cai na cabeça…
Em cada quadro, ele nos faz esquecer de que é palhaço, nós fazemos abstração daquela cara pintada, daquela roupa de clown, daquele cômico irresistível, de seus mínimos gestos; nós ficávamos vendo apenas o Carlitos humano, sofredor, pequeno miserável. (ANJOS, 1933)
Contam que na Rússia, uma platéia toda chorou com um dos últimos filmes de Charlie Chaplin. É que, na verdade, o que há neles é tragédia, e da alta, leitor amigo. (ANJOS, 1933)
A visão que Belmiro teve de Chaplin foi repetida algumas décadas depois pelo cartunista argentino Quino, desenhista da Mafalda, que em uma charge retratou um filme de Chaplin sendo exibido no cinema, causando risos em metade da platéia e lágrimas na outra metade.
O poeta Manuel Bandeira escreveu uma crônica em homenagem a Chaplin, “O Heroísmo de Carlito”, no qual ele interpreta singelamente os filmes do ícone. Sua visão é análoga à de Cyro dos Anjos: cada um enxerga em Carlitos o que quer, e por isso mesmo ele apela à qualquer tipo de audiência.
Como se diz em linguagem matemática, [Carlito] pôs em evidência o fator comum de todas as expressões humanas. O olhar de Carlito, no filme O Circo, para a brioche do menino faz rir a criançada como um gesto de gulodice engraçada. Para um adulto pode sugerir da maneira mais dramática todas as categorias do desejo. A sua arte simplificou-se ao mesmo tempo que se aprofundou e alargou. Cada espectador pode encontrar nela o que procura: o riso, a crítica, o lirismo ou ainda o contrário de tudo isso. (BANDEIRA, 1958, p.246)
Bandeira afirma que Chaplin tem o “dandismo do grotesco”, e ainda finaliza a sua crônica realçando as similaridades entre cinema e literatura: “Com efeito, Carlito é poeta”. (BANDEIRA, 1958)
O poema “Canto ao homem do povo – Charles Chaplin”, escrito por Carlos Drummond de Andrade em homenagem a Carlito, e uma mostra perfeita do impacto que o clown (e, por conseguinte, o cinema) teve no Brasil:
Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo – inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua. (ANDRADE,1996, p.196)
O cinema poderia ser encarado como um concorrente da literatura. Segundo Santiago, uma questão frequentemente levantada no debate estético do século XX era se o filme havia tido sucesso em tornar o livro um meio de arte anacrônico, obsoleto. O ato de assistir um filme certamente é mais fácil do que o de ler um livro; poderia isso significar a extinção dos leitores? Na verdade, a modificação que a linguagem do cinema ocasionou no universo dos livros foi bem mais profunda e benéfica do que se havia predito. A linguagem da literatura assimilou aspectos cinematográficos, causando uma grande mudança na sua dinâmica. O cinema informava e era contemporâneo. A literatura, seguindo o mesmo caminho, passou a tratar de temas atuais, e a se dirigir a leitores atuais. Walter Benjamin afirmava que o cinema era uma arte que chocava o espectador; a literatura também começou a buscar o “choque” nos seus temas. (Santiago dá como exemplo o poema “A morte do leiteiro,”, de Carlos Drummond de Andrade, no qual um leiteiro é brutalmente assassinado). (SANTIAGO, 2004). Isso sem mencionar as mudanças de estilo de escrita causadas por influência da maneira como a câmera segue os personagens nos filmes.
Além das mudanças inerentes no texto literário que ocorreram por influência dos filmes, a vasta quantidade de análises e críticas dedicadas ao cinema pelos nossos melhores escritores evidenciam que esta forma de arte nova rapidamente se tornou um elemento intrínseco na vida de uma geração. O cinema progrediu de novidade tecnológica para forma de arte reconhecida. Em um trecho dos Novos Diários, Eduardo Frieiro reflete sobre o papel que os filmes ocupam em sua vida.
Reduzi quase todos os meus passatempos a um só; o cinema. Na verdade, o cinema é um admirável sucedâneo de todas as artes. Música, dança, poesia, teatro, romance, paisagem, artes do desenho, luz, cor, som, tudo se encontra nessa arte moderna por excelência, somatório de todas as outras. (FRIEIRO, 1986, p. 30)
No livro Cinematógrafo de Letras, Flora Süssekind descreve a influência que o cinema exerce sobre os escritores em um período ainda anterior ao que as crônicas de Cyro dos Anjos figuravam nos jornais. A autora identifica o diálogo de escritores com a tecnologia logo após a fotografia se popularizar no Brasil. Pedro Kilkerry chegou a nomear suas crônicas, publicadas no Jornal Moderno da Bahia, em 1913, de “Kodaks”: assim como as fotos, o escritor pretendia que seus textos fossem “flashes” da realidade.
O impacto causado pelas fotografias na maneira de escrever seria repetido pelo cinema, já nas décadas de 1910 e 1920. Segundo Süssekind, João do Rio tratou das novas tecnologias com “encantamento”; o autor estava perfeitamente ciente da mudança no “modo de olhar” que elas orquestravam. Além de escrever abertamente sobre o assunto, de maneira mais sutil, João do Rio incorporou aspectos do cinema na sua escrita; por exemplo, a presença de um narrador se esmaeceu, em deferência a uma “sucessão de relatos breves, assinados pelos mais diversos personagens”.
O “encantamento” de João do Rio pode ser percebido em seu interesse pelo gênero de crônicas, que ele considerava como sendo gêmeo da cinematografia. O autor discorre sobre o assunto na sua coletânea de crônicas, convenientemente chamada Cinematógrafo:
A crônica evolui para a cinematografia. Era reflexão e comentário, o reverso deste sinistro animal indefinido a que chamam: o artigo de fundo. Passou a desenho e a caricatura. Ultimamente era a fotografia retocada mas com vida. Com o delírio apressado de todos nós, agora é cinematográfica – um cinematógrafo de letras, o romance da vida do operador no labirinto dos fatos, da vida alheia e da fantasia -, mas romance em que o operador é personagem secundário arrastado na torrente dos acontecimentos. (RIO, 1909, apud SÜSSEKIND, 1987, p.45)
Süssekind comenta que, além da mimesis do cinema no estilo narrativo, referências rápidas, de passagem, mostram como o cinema já havia se inserido no cotidiano (SÜSSEKIND, 1987). Pequenas referências aos filmes, escondidas nas crônicas de Cyro sobre os mais diversos assuntos, são quase mais reveladoras do que as crônicas de cinema em si, no que diz respeito a quanto ao papel intrínseco que o cinema representava na sua vida. Na melancólica “Gato Comeu…” Belmiro se pergunta, cheio de nostalgia, o que terá acontecido com a sua juventude.
Cadê minhas namoradas? Cadê meu tempo? Cadê o cinema Odeon? Cadê as serenatas? Cadê a alegria? Cadê o entusiasmo? Cadê a vida?
Gato comeu. (ANJOS, 1934)
Sempre mencionado de passagem, o cinema Odeon chega a ganhar contornos de mito. Ao censurar o pragmatismo dos jovens, Belmiro chega à conclusão que eles são a geração do Cine Brasil, menos sonhadores e apaixonados do que os membros da juventude do Cine Odeon.
Enfim, esses rapazes de hoje não dão, mesmo, no couro. Parece que são insensíveis à graça perturbadora dessas meninas – geração Cine Brasil – mais leves, mais ousadas, mais felinas que aquelas outras minhas contemporâneas da geração do cinema Odeon. (Essas outras eram da valsa e do luar e nos comoviam loucamente. Mas o gosto mudou e já nem se ouvem os compassos delicados de uma valsa. Contudo, continuamos enluarados, nós, os da geração Odeon). (ANJOS, 1934)
“De domingo para terça”, publicada em 30 de maio de 1933 em A Tribuna., é uma crônica sobre o cotidiano; nela, Belmiro Borba discorre sobre a liberdade dos domingos, cunhando para isto o termo “domingar”. Uma menção mínima, quase escondida a respeito do cinema, trai o tanto que esta forma de arte se embrenhou no dia a dia de uma geração inteira:
O domingo é dos vinhos e das coisas doces ou inconsequentes. Mesmo o amor é coisa pesada para esta tarde. Não lembraremos de nossas namoradas, nem de nossas noivas, nem de nossas mulheres. Ficaremos soltos, vagos, olhando o retrato de uma atriz de cinema, ou o trecho da cidade que o nosso alpendre domina e delimita. Esse pijama bom, fresco, e esse chinelo que foi feito exclusivamente para os nossos calos. (ANJOS, 1933)
Bibliografia
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SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008.
SÜSSEKIND, Flora. O cinematógrafo de letras. São Paulo – Schwarkcz ,1987
[1][back]As crônicas de Cyro dos Anjos foram publicadas somente uma vez, nos próprios jornais. Como o Acervo de Escritores Mineiros possui apenas os recortes das crônicas, e não os jornais inteiros, os números das páginas das citações não puderam ser disponibilizados.
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